Marta e Maria, o que nos habita? Que escolhas nos agitam?
COMENTÁRIO BÍBLICO
16º Domingo Comum – Ano C
17jul2022
2 Reis 4,8-17; Salmo 139,13-18; Colossenses 1,21-29
S. Lucas 10,38-42
38 Jesus e os discípulos seguiam o seu caminho. Ao entrarem numa aldeia, uma mulher
chamada Marta recebeu Jesus em sua casa. 39 Ela tinha uma irmã chamada Maria que se
sentou aos pés do Senhor para o ouvir. 40 Ora Marta andava muito atarefada, por ter muito
que fazer. Aproximou-se e disse: «Senhor, não te preocupa que a minha irmã me deixe só
com todo o trabalho? Diz-lhe então que me venha ajudar.» 41 Mas o Senhor respondeu:
«Marta, Marta, andas preocupada e agitada com tantas coisas, 42 quando uma só é
necessária. Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada.»
1. Mais um episódio só narrado no Evangelho de S. Lucas. Ao contrário do comentário frequente
a propósito dessa narrativa, conjugando-a com outras, não parece que aqui se possa inferir
que Jesus queira fazer uma comparação teórica e qualitativa entre ação e contemplação, entre
trabalho, disponibilidade e dedicação, por um lado, e devoção e consagração, por outro. Aliás,
tanto uma como a outra atitude são duas faces do comportamento essencial a uma ação de
acolhimento como aquela que ali se prefigura, a melhor hospitalidade a conceder tanto a Jesus
como ao grupo que O acompanhava.
Jesus tem perfeita consciência de que a nossa vida é feita de inúmeras ações, umas mais
fáceis, outras, mais difíceis, umas insignificantes, outras, essenciais, umas necessárias, outras,
supérfluas. Então, a perícope, ao mostrar Jesus a responder a Marta «andas preocupada e
agitada com tantas coisas, quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte que
não lhe será tirada.», dirige-se a nós e ao modo como enfrentamos as ocupações e desafios
quotidianos, interpelando-nos para a necessidade de distinguir entre o essencial do supérfluo.
distinguir entre o essencial do supérfluo.
Repare-se que “a melhor parte” não dispensa, precisa das outras partes e preocupações.
Miguel Torga escreveu num dos seus Diários “Temos tudo, falta-nos o essencial”. E o que é o
“essencial” senão o que nos preenche, o que dá sentido à nossa vida, o que nos faz pensar no
que somos e no modo como nos apresentamos no acolhimento de Deus e dos outros. Ora,
aqui está o que Jesus nos quer dizer. Se queremos ser bons acolhedores temos de ter presente
que só o somos verdadeiramente no encontro pessoal, centrado no que as pessoas
(realmente) são, adaptando os pormenores e outras circunstâncias a esse ditame, à relação do
encontro, e só.
2. Se conjugarmos o relato do Evangelho de hoje com o da ressurreição de Lázaro (S. João 11,
1-43) verificamos que Marta é a gestora da casa, uma mulher resoluta, inquieta, sempre
disponível e pronta a ajudar. É ela que, ao saber que Jesus está a chegar, por altura da morte
de seu irmão, vai ao Seu encontro, e que, ao ver que Jesus manda que tirassem a pedra do
sepulcro onde o tinham sepultado, Lhe diz, como aviso imediato, “Senhor, já cheira mal. É de
quatro dias”. Nela as coisas acontecem à medida das circunstâncias, num pragmatismo que
quase arrefece o sentimento e o carinho. Este tipo de pessoas é necessário para fazer as coisas
andar, mas em determinados contextos, sem se darem conta, alteram, ou contribuem para
alterar o sentido ou a essência de um ato. E isto porque nem sempre têm consciência da
diferença entre o essencial e o efémero. Têm alguma dificuldade em compreender a
importância da “escuta”. Encontram sempre algo a fazer que lhes capta totalmente a atenção
e, por isso, as distrai do essencial. O desejo de tanto e tudo fazer – sem pensar – leva tais
pessoas a esquecer (descurar) o tempo necessário e a parte mais importante que contém a
“escuta” da Palavra e que leva à descoberta do ‘ser’ e ‘estar’ antes do ‘fazer’. E quantos de nós
estaremos no número deste tipo de pessoas?
consciência da diferença entre o essencial e o efémero …
3. A este propósito deixai que vos apresente um aviso do Papa Francisco feito não há muito
tempo numa audiência a Bispos da América Latina: “lembrem-se de estar atentos às três
idolatrias que sempre ameaçam a marcha do Povo fiel de Deus: a mediocridade espiritual, o
pragmatismo dos números e o funcionalismo que nos leva a ser mais entusiastas pelo plano de
rota do que pela rota.” (“7 Margens”, 12julho2022). A “mediocridade espiritual “ decorre, entre
outras causas, da inexistência da “escuta”, seja de Jesus, dos outros e da nossa própria consciência. É
a importância da escuta
muito mais fácil fixarmo-nos nas “certezas” das nossas convicções e preconceitos, em vez de
abalançarmo-nos na sua análise comparando-os com a Palavra que é Jesus Cristo. Ou porque não
temos tempo, ou não temos paciência, ou não queremos preocupar-nos com o que nos faz pensar,
ficamos, assim, sujeitos a um modo de estar que não é propriamente o nosso, pois, é nos ditado pelas
“mensagens” que nos vêm do exterior, boas, más ou assim-assim, e sempre com o objetivo de nos
captar. É o estado de uma fé que assenta em declarações religiosas, credos, catecismos e outros
instrumentos catequéticos, sem espírito crítico nem análise cuidada. E as igrejas, naturalmente,
passam a reger-se no seu andamento pelo pragmatismo dos números, as estatísticas, e por um
funcionalismo que lentamente lhes abafam o espírito. Não sei se são idolatrias, mas que são “coisas”
que agitam e preocupam as Igrejas, lá isso são, e não são a melhor parte.
+ Fernando
Bispo Emérito da Igreja Lusitana