O Pecado, a cruz e os discípulos: o sedicioso charme do Evangelho

Rev. Dr. Robert Butterfield

Comecemos com esta pergunta: E se Jesus tivesse morrido de velho na cama?  Faço esta pergunta não porque eu saiba a resposta, mas porque revela quão importante é a cruz em comparação com todo o resto que Jesus fez, por mais lindo que fosse isso.

A história da interpretação teológica da cruz como também a história da utilização da cruz dentro e fora da Igreja são complicadas, de maneira que não é prático revisar essas questões aqui.[1]  Mas não faz mal.  Vamos depender daquilo que Paulo diz sobre a cruz, nomeadamente, que esta constitui a chave do significado soteriológico de toda a obra de Cristo.  Para Paulo, a cruz é tão importante que ele decide nada saber senão a Jesus Cristo, e este crucificado (1 Cor 2:2).

Esta decisão interpretativa da parte de Paulo é radical mas justifica-se pelo que Paulo entende ser a situação do ser humano.  Contrario à tradição judaica, que considera o ser humano como sempre capaz de escolher o bem e de rejeitar o mal (veja, p.e., Gen 4:6-7 ou Deut 30:15-20), evitando assim o pecado e fazendo a vontade de Deus, Paulo tem umas ideias bem diferentes sobre o pecado.  Falando a partir da sua própria experiência (Rom 7), Paulo explica que quando ele peca, não é por desejo do mal nem por nenhum outro motivo pessoal, é porque ele não pode não pecar.  Como assim?  Digamos que Paulo tenha uma boa e sincera intenção.   Lamentavelmente, no entanto, há uma força misteriosa que intercepta esta sua intenção, corrompendo-a e separando-a da efectiva consumação do seu ato, de maneira que o resultado não é o bem que Paulo queria fazer mas exactamente o mal que não queria fazer.  Esta força misteriosa, poderíamos chamá-la de morte, pois tem a força da morte.

A realidade desta força mortífera exige que Paulo diferencie entre os pecados dos indivíduos e esta mortífera força cósmica que ele denomina Pecado.

Mas de onde vem o Pecado?  Deixem-me sugerir uma possível explicação bíblica.  Quando Deus se pôs a criar o universo (Gen 1:1-2), deparou-se com os seguintes materiais de construção: uma terra sem forma e vazia e um mar coberto por trevas espessas.  Estes materiais não eram senão o caos primevo, ou seja, o que há de mais antagónico à vontade divina.  É isto que os teólogos querem dizer quando falam da famosa criacão desde o nada (creatio ex nihilo).  O nada (nihil) a partir de que Deus realiza a criação é o caos primevo, ou seja, o Pecado.  Com o poder do seu Espírito (ruach), Deus não somente impôs uma certa ordem sobre estas forças antagónicas como também conseguiu construir um universo muito lindo, do qual nós seres humanos somos a parte mais agradável aos olhos de Deus.  Mas, por mais bela que seja esta criação, pelo menos vista do exterior, ficou sem solução a questão dos materiais defeituosos que foram utilizados na construção.  Talvez porque a realização desta criação resultou tão fácil para Deus—ele só teve de falar para conseguir—Deus não prestasse atenção a essa questão.  De fato, apesar da presença do Pecado em tudo o que foi criado, Deus ficou bastante otimista sobre a sua criação e sobretudo sobre a possibilidade de os seres humanos fazerem a vontade dele.  Durante séculos e séculos, lidando primeiro com os seres humanos em geral e depois com os israelitas em particular, Deus manteve firme esse seu otimismo até finalmente não poder aguentar mais a nossa infidelidade e dar-se conta da cruel realidade seguinte: devido ao Pecado, o ser humano não pode não pecar.

Cabe aqui falarmos do mito cristão, que é o seguinte: uma vez no tempo e no espaço, Deus fez-se homem para nos resgatar do impasse mencionado acima.  Mas qual é o impasse exatamente?  Não pode tratar-se dos nossos pecados como indivíduos, pois desde vários séculos antes de Jesus Cristo os judeus sabiam e criam que Deus está bem disposto a perdoar os nossos pecados.  É só tornar-se para Deus (arrepender-se) para se ser perdoado.  Com certeza, Deus não entrou uma vez no tempo e no espaço, em forma humana, para dizer aos judeus algo que eles já bem sabiam.  A única razão acreditável por Jesus Cristo é que por meio dele Deus quis lutar contra o Pecado.

E de fato a questão no Novo Testamento é antes a luta contra o Pecado que o perdão dos pecados dos indivíduos.

Se, no decorrer do seu ministério adulto, Jesus perdoa os pecados de alguns indivíduos, é porque Deus sempre fez isso, mas a razão de ser da missão de Jesus era o combate contra o Pecado.  Então, a Boa Nova de Jesus não é que ele tem perdoado os nossos pecados mas que tem lutado para nos libertar da força mortífera do Pecado, de modo que possamos finalmente fazer a vontade de Deus sem que as nossas boas intenções fiquem desviadas e frustradas.

A razão pela qual nós gentios temos recebido o perdão dos pecados como se fosse a Boa Nova é que, não sendo judeus, ignorávamos tudo de Deus e sobretudo não sabíamos do seu carater perdoador.  Isto significa que o perdão dos pecados, embora muito importante e sempre necessário, não constitui o Evangelho mesmo.  Se o Evangelho consistisse simplesmente do perdão dos pecados, Jesus poderia ter anunciado uma indulgencia plenária e logo ter-se aposentado na Galileia.  A estrutura dos evangelhos sinóticos indica que estes são essencialmente narrativas sobre a paixão de Cristo; têm longos prólogos, mas o âmago destas narrativas é a cruz, que serve de campo de batalha entre Jesus e o Pecado.

Então, a missão de Jesus não consistiu só em perdoar, curar e ensinar mas também e sobretudo de fazer algo totalmente novo e sumamente arriscado, nomeadamente, lutar contra as forças cósmicas do mal.  Na história de Israel, já tinha havido muitos profetas, sábios, reis, heróis e outros grandes líderes, mas até Jesus, ninguém foi chamado para fazer tal luta cósmica.

A maior tendência na tradição teológica tem sido a de interpretar a ressurreição de Cristo como a sua grande vitória.  Mas devemos recordar que Jesus fez questão de explicar que ele não era um messias-Herodes, não era um messias-super-herói.  O profeta Elias tentou atuar como super-herói quando pediu para Deus mandar fogo para destruir os profetas de Baal (1 Reis 18).  Depois, tendo fugido para salvar a vida, Elias dirigiu-se a Deus em oração, pedindo proteção (1 Reis 19).  Deus respondeu mandando um vento muito forte, mas Deus não estava no vento.  Depois, Deus causou um terremoto, mas Deus não estava no terremoto.  Depois do terremoto veio um fogo, mas Deus não estava no fogo. Mas Deus estava, sim, numa pequena voz que Elias ouviu.

Jesus parece-se muito com este mesmo Deus.  Jesus não veio brandindo vento, terremoto ou fogo.  Jesus é um messias meigo, amoroso e não-violento.  Vem armado de um certo poder, mas não o poder de derrubar os reis e muito menos as forças cósmicas do mal.  O poder que Jesus tem é o poder de mostrar aos poderes os seus limites, o que já representa uma modesta vitória, uma abertura para o bem.

Um bom exemplo do que Jesus faz encontra-se em Mateus 1-2, que narram o nascimento de Jesus.  Herodes, o rei todo-poderoso, tenta descobrir onde é que o novo rei dos judeus vai nascer porque quer matá-lo.  Graças à colaboração ou cumplicidade dos magos, no entanto, o desejo de Herodes fica frustrado.  Assim, Jesus mostra a Herodes os seus limites.  Além desta mini vitória contra os poderes, devemos notar que esta só foi possível porque os magos se comportaram não como objetos da história (isto é, como pessoas a quem coisas acontecem) mas como sujeitos da história (isto é, como pessoas que fazem coisas acontecer).  Em relação ao rei Herodes, os magos são poderes subalternos, mas os magos tornam-se insurgentes na sua colaboração com Jesus.  Assim, aprendemos que o messias meigo, amoroso e não-violento precisa da insurgência do povo para cumprir a sua missão.

Outro exemplo do mesmo fenómeno aparece nos textos que falam de Jesus alimentando uma multidão (por exemplo, Marcos 6:30-44).  Com uma pequena quantidade de pão e peixe, Jesus consegue alimentar a multidão, coisa que nem o Herodes todo-poderoso poderia fazer.  Conforme a lógica do messias meigo que precisa da colaboração do povo, o milagre não consiste tanto no fato de Jesus ter multiplicado os pães e peixes quanto no fato de a multidão, gente pobre e excluída, se ter comportado não como objetos da história, isto é, como pessoas que ficam passivas e só recebem; mas como sujeitos da história, isto é, como pessoas que participam ativamente no evento de maneira a possibilitá-lo.  Em outras palavras, ao compartilhar entre si os pães e peixes, a multidão tornou-se insurgente.  Então, se a alimentação da multidão se pode considerar um milagre, é um milagre realizado juntamente por Jesus e o povo.

Esta mesma lógica aplica-se a todo o Evangelho Segundo Marcos.  Neste Evangelho, a identidade de Jesus fica um segredo, e Jesus não pode revelar-se a si como messias até o próprio povo poder entender que ele, o povo, é parte do próprio sujeito da ação messiânica.  A insurgência dos povos subalternos é o que possibilita afirmar que o Reino de Deus já está aqui (em virtude da autoafirmação dos excluídos) mas ainda não está aqui (porque as estruturas de poder, embora relativizadas, ainda não estão superadas).

A mensagem implícita nestes textos é que o povo não deveria esperar por um messias-Herodes.  Deveria esperar por si próprio.  Mas, em Marcos, mesmo perto do fim da vida de Jesus, à última ceia, os discípulos ainda não têm compreendido que ele não é um messias-Herodes.  Eles resistem à ideia de ele ser meigo, amoroso e não-violento.  Prefeririam ter um messias armado de um poder suficiente para superar as estruturas de poder, um messias conquistador.  Em outras palavras, os discípulos prefeririam permanecer objetos da ação messiânica, espectadores passivos da grande obra de Jesus.  Em todo o caso, Jesus está plenamente consciente de dois fatos: 1-ele vai ter de morrer, e 2-ele não é um messias conquistador.  Então, se a ação messiânica vai continuar depois da morte dele, os discípulos é que devem continuá-la.  Assim, Jesus tem de inventar uma maneira de ligar os discípulos tão estreitamente a ele que, apesar da falta da compreensão deles, vão poder substituí-lo.  Se a cabeça deles não quer aceitá-lo como ele é na realidade, Jesus deve vincular-se com eles por meio do estômago deles: o vinho que Jesus derrama para eles será o sangue dele; o pão que ele lhes dá será o corpo dele.  Assim, estabelece-se uma conexão visceral entre Jesus e os seus discípulos.  Jesus espera que, mediante esta conexão, mais cedo ou mais tarde, os discípulos se tornem insurgentes.  No entanto, nós leitores ainda não sabemos o que é que os discípulos vão ter de fazer como eventuais substitutos a Jesus.  Por isso devemos falar mais sobre a cruz e sobre o Pecado.

Já vimos vários exemplos de como Jesus mostra aos poderes os seus limites, mas o exemplo par excellence é a cruz mesma.  Na cruz Jesus está cruelmente abusado, derrotado e morto, de maneira que o Pecado sai todo-poderoso e vitorioso.  Mas, após três dias, ou seja, justamente no momento em que a vitória do Pecado parece esmagadora e terminante, Jesus ressuscita dentre os mortos.  Isto não significa que o poder do Pecado se tenha extinguido—é só dares uma olhada no mundo para te dares conta de que o Pecado ainda está em vigor—mas significa, sim, que efetivamente o Pecado não é assim tão poderoso, que tem os seus limites, os seus pontos fracos, que pode ser criticado, subvertido, que o Pecado fica relativizado, que não é Deus. Então, a ressurreição de Jesus constitui uma espécie de vitória, uma vitória modesta em função da modéstia de um messias meigo, amoroso e não-violento.  É uma vitória que deixa muito por fazer e que pede para ser completada por discípulos insurgentes.

Então, podemos afirmar que o papel de um discípulo de Jesus consiste em fazer duas coisas:

1-proclamar o amor de Deus, sobretudo manifestado na pessoa de Jesus e na forma do perdão dos pecados dos indivíduos, sendo que muitas pessoas ou ainda não sabem disso ou se comportam como se não soubessem, e

2-lutar contra o Pecado.

O primeiro ponto não apresenta grandes dificuldades de compreensão, mas o segundo, sim. Exige explicação.

Sabemos que, devido ao fato de o Pecado ter sido utilizado como material de construção na criação, tudo e todos na criação têm dentro de si esta força antagónica à vontade de Deus.  É por isso que nos confessamos continuamente e pedimos perdão e ajuda divina para podermos escolher o bem e fazer a coisa certa.  Temos assim pelo menos um mínimo de controle sobre o efeito que o Pecado exerce sobre nós.  Mas é só o mais mínimo porque o Pecado é uma besta sorrateira que se esconde não só no nosso coração e subconsciente como também em todas as nossas instituições.  Raras vezes o Pecado se deixa ver.  Via de regra, o Pecado jaz sepultado dentro de instituições que, ao menos do exterior, parecem boas e socialmente úteis.  E o mais problemático é que, numa certa medida, estas instituições são de fato boas e socialmente úteis, mas ao mesmo tempo sofrem da influência malvada e, muitas vezes, despercebida do Pecado.  Isto é, o Pecado tem penetrado na textura social onde ocupa um lugar bem camuflado e difícil de identificar a partir do qual pode sub repticiamente distorcer e corromper as intenções até mesmo da pessoa mais bem intencionada.

O fato de o Pecado espreitar escondido nas instituições é importante porque herdamos estas instituições e com elas também herdamos o Pecado.  Então, a transmissão do Pecado não é biológica, através de Adão, é social, através das instituições.  E nós nascemos e crescemos dentro destas.  Isto significa que não é possível atribuir o pecado somente a um indivíduo.  Os nossos pecados e o Pecado estão tão entrelaçados que não é possível separá-los uns do outro.  Por exemplo, tenho esposa, filhos, netos, nora, genro, ligações com várias instituições e sistemas socioeconómicos, colegas e amigos em várias partes do mundo.  Eles constituem como que uma escolta que me acompanha onde quer que eu vá, de maneira que não sou nunca sozinho.  Eles estão lá comigo até mesmo perante Deus.   Quando Deus reflecte sobre os meus pecados, tem de fazê-lo à luz de toda esta minha textura social.  Sou ainda responsável pelos meus pecados, mas estes são inseparáveis do tecido social em que nasci, cresci e vivi.

De tudo isso podemos fazer várias inferências.  Comecemos pela mais óbvia.  Hoje em dia, devido à atomização social produzida pelo capitalismo, as pessoas sentem-se e de fato estão cada vez mais isoladas umas das outras, de maneira que há uma crescida ênfase sobre o indivíduo e sobre o que a sociedade pode oferecer ao indivíduo.  Isto é, o indivíduo veio a enxergar a sociedade como um mercado em que ele pode comprar coisas para si.  E esta visão individualista não faz exceção para a religião, de maneira que o cristianismo também passou a ser considerado como um medicamento-divertimento destinado unicamente a acalmar e consolar o indivíduo.  Agora, pelo menos nos países mais capitalistas, o culto concebe-se como uma terapia destinada a fazer com que o indivíduo não tenha problemas psicológicos-emocionais que possam interferir com a sua produtividade ou felicidade pessoal.

Aprendemos acima, no entanto, que toda a nossa vida decorre numa rede de relações sociais e que nem mesmo os pecados podem ser atribuídos somente a um indivíduo.  Os nossos pecados não são senão sintomas do Pecado que se esconde na sociedade.  Então, por mais atomizados que o capitalismo queira que fiquemos, somos criaturas sociais.  O que fazemos relaciona-se com a nossa textura social e com várias influências institucionais sorrateiras que, via de regra, desconhecemos.  Uma religião privatizada seria abstrata, não tendo nada a ver com estas realidades.  A Igreja tem sempre lutado contra tal tendência individualista.  É por isso que, no batismo, nos desfazemos da nossa velha identidade como indivíduo para vestir uma nova identidade comunitária.  Graças ao batismo, não somos mais pessoas atomizadas, fazemos parte do corpo de Cristo.

Assim, o que Paulo nos diz sobre os pecados e o Pecado ajuda-nos a ver o carácter sumamente social da fé cristã e, consequentemente, a responsabilidade social do cristão.

Este tema de responsabilidade social leva-nos directamente à próxima inferência. Se, como dissemos, o Pecado se esconde na textura social a partir de que este exerce sobre nós como que uma força gravitacional que desvia até mesmo as intenções mais puras, causando todo tipo de pecado, fome, miséria, guerra etc., a responsabilidade do cristão, começando pelo(a) pastor(a) mas incluindo todos os membros da comunidade, é desmascarar e denunciar o Pecado onde quer que se encontre.  No correr normal da vida social, não causa grande distúrbio ou perturbação dizeres às pessoas que tu as amas e perdoas.  Mas se criticares a instituição que amam por dela dependerem, vais encontrar-te numa briga.  Por quê?  Lutero disse que não há ateus neste mundo, pois o deus das pessoas é qualquer coisa de que dependem em última instância.  Todo mundo depende de alguma coisa, e por isso ninguém é ateu.  Mas muitas pessoas dependem em última instância de coisas que não são Deus.  Isto chama-se de idolatria.  Por exemplo, nos EUA, e lamentavelmente noutros países também, a verdadeira religião de muitas pessoas, embora nunca quisessem admiti-lo, é o capitalismo.  Muitos americanos assistem regularmente ao culto dominical e se consideram cristãos.  Mas, e isto é incontestável, a idolatria impossibilita qualquer fé no Deus uno.  Não é por nada que o primeiro texto da Bíblia Hebraica começa por denunciar e rejeitar a religião babilônica.  Não é por acaso que os Dez Mandamentos começam por Deus mandar que não adoremos outros deuses e que adoremos somente a ele.  Não é coincidente que a missão do nosso Senhor e Salvador Jesus não pode começar até Jesus, no deserto, demonstrar a sua absoluta fidelidade a Deus Pai.  Dissemos acima que o Pecado tem a força da morte, e não há nenhum lugar em que este poder mortífero se revela mais claramente do que na idolatria: a idolatria mata a fé.

Os idolatras, no entanto, não admitem nem a si mesmos que idolatram.  Acham esta ideia tão repugnante que a reprimem, de maneira que se sentiriam rudemente insultados se alguém, sobretudo o(a) pastor(a), alguma vez sugerisse uma coisa assim.  Claro, o ídolo não tem de ser o capitalismo.  Poderia ser qualquer instituição, inclusivamente a igreja institucional, qualquer estrutura social ou económica, qualquer crendice, qualquer preconceito.  Os idolatras reagem com raiva a qualquer tentativa, por mais meiga, amorosa e não-violenta que seja, de lhes fazer reconhecer a sua idolatria.  É só se lembrar de como reagiram a Jesus.

Mas a tarefa principal do discípulo consiste exactamente em descobrir e revelar este mesmo Pecado que as pessoas e a sociedade preferem reprimir e manter escondido.  Naturalmente, o discípulo não se ilude a pensar que pode derrubar este Pecado, pois nem o próprio Jesus conseguiu fazer isto.  De facto, o discípulo espera não conseguir, mas sabe que todavia deve tentar e que, provavelmente, a sociedade vai fazê-lo sofrer por ter tentado revelar o que ela desejava manter sob sigilo.  O discípulo que age desta maneira parece-se muito com Jesus, que também sabia que não conseguiria e que seria punido por ter feito a tentativa.  Isto é o que Jesus queria comunicar quando disse que os seus discípulos teriam de carregar cada um a sua própria cruz.

Claro está que o discípulo de Jesus tem de ser persistente e corajoso e de estar disposto a contentar-se de vitórias modestas, sem que a modéstia destas o desencoraje.  Nem um só discípulo nem todos os discípulos juntos vão poder derrubar o Pecado, mas cada vez que identificarmos e denunciarmos o Pecado, mostramos às pessoas que o Pecado não é todo-poderoso, que tem limites, que é vulnerável, que não é Deus, que há uma certa abertura para o bem.  Em tudo isso, nós discípulos inspiramo-nos pelo que se chama de esperança escatológica, quer dizer, esperamos que em última instância, quando Jesus voltar para arrumar o mundo e fazer justiça, Deus supere o Pecado.  Até então, ficamos insurgentes.

 

28 de Março 2020

 

[1] Sugiro que o leitor interessado por saber mais sobre este assunto leia o artigo «A Cruz, a teologia e as rosas» de Vítor Westhelle, publicado originalmente na revista Estudos Teológicos, v. 30, n. 3, 1990, pp.224-243.

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